10 de nov. de 2009

O veraneio que o vento levou 1


Nunca poderei me esquecer dos longos anos que tive o privilégio de veranear. Tem dias que estou no meio do trânsito, o sol fritando o asfalto, e logo vem aquela vertigem que me retrata o passado na minha imaginação. É um momento de extrema intensidade emocional, de suspiro, de um tempo que jamais vai voltar. Mas não importa: ficou para sempre no meu sangue. Ainda correm em minhas veias e artérias, pra lá e pra cá, o cheiro da maresia, o sabor do chicabon, o gosto do pastel de camarão, a adrenalina do futebolzinho de final de tarde e o arrepio do primeiro beijo de verdade.
A primeira grande descoberta que tive pelas ruas de Capão da Canoa foram meus pés. Livres dos chinelos (não chamava de sandálias) havaianas, àquela época ainda bicolores, brancas com as tiras e uma camada fina do solado de outra cor. Eu gostava de virar o chinelo do avesso e inverter as tiras, assim ele ficava de uma só cor. Não é por acaso que hoje existem sandálias de uma só cor ou bem coloridas. Mas andar descalço era uma maravilha. Minha sola do pé chegava a ficar preta. Era no asfalto, na areia, na calçada, por tudo. Outra coisa bacana que hoje é difícil de uma criança numa cidade grande fazer, era buscar o pão, o leite os os frios na padaria. Pegava alguns cruzeiros com minha mãe e enfiava na sunga. Ficava metade da grana pra fora e não tinha perigo algum. Escolhia o pão fresquinho, um pouco de queijo, presunto e um saquinho de leite. Eu tinha uns 11 anos e achava aquilo o máximo. Me sentia dono do meu próprio nariz.
Certa vez, depois de uns 30 dias de praia eu parecia um bugre com o cabelo queimado do sol, a sola dos pés reforçada e a pele cor de pinhão. Fui no antigo boliche que ficava bem na praça central de Capão. Vi uma gurizada juntando as bolas e arrumando os pinos. Era meio da tarde. De repente, um cara se aproximou e disse:
- Quer ganhar um dinheirinho, guri?
- Eu quero! - disse.
- Então, pega no lugar daquele guri ali ó que depois te dou teu dinheiro.
Eu levei aquilo na brincadeira, não me dei conta de que estava tomando o lugar de alguns meninos de rua que precisavam do dinheiro até para ajudar os pais em casa. Mas como estava de pés descalço, só de calção, já surrado de tanto brincar na praia, também nenhum deles se deu conta de que eu era um veranista que estava passando as férias com a família ali para me divertir.
O guri da pista do lado me explicou como funcionava e até me ajudou a ficar ligado no jogo. Passaram-se horas e eu nem liguei. Estava feliz com aquela agitação. Cai pino, junta pino, coloca bola no trilho, joga, strike e junta e vai! Era umas oito da noite, quando o mesmo cara me chamou:
- Deu guri, chega! Senão vai ficar cansado. Onde tu mora, cadê teus pais?
Comecei a me dar conta de que não era a minha praia, mas fiquei com vergonha de entregar o jogo.
- Fiquei de me encontrar com eles lá no Baronda! Tchau!
- Peraí, tu não tá com fome? E dinheiro?
- Não precisa, obrigado. Eu não quero.
- Vem cá!
E me levou até um trailer de cheeseburger junto com o outro guri.
- Que tu qué?
- Nada!
- Vê aí um xis completo pros dois guris!
Assim que ficou pronto, o outro guri comeu o lanche com fome de cachorro.
Bah, o meu veio cheio de mostarda e catchup e eu não gostava de nada daquilo. Comi tudo bem quieto. Agradeci e ele me deu dois cruzeiros.
- Volta amanhã?
- Vou ver, muito obrigado. Tchau, tio.
- Valeu guri!
Ainda ouvi ele comentando:
- Essa gurizada tá perdida, arranjo uma grana e um jeito de encher o bucho do guri e ele não sabe se volta amanhã. Tem brahma aí, tchê!
Assim que passei a pracinha e virei a esquina chamei o guri. Ele era mais velho. Não lembro o nome dele.
- Vem cá, pega os dois pila pra ti.
- Que foi?
- Eu não tô precisando. Obrigado pela ajuda.
E saí correndo porque já estava escurecendo. Imaginei que as havaianas que deixei em casa iam servir para outra coisa. Dito e feito. Cheguei em casa estava minha mãe furiosa e logo já me deu aquela palmada bem na coxa: - Pá!
- Onde tu tava guri!
Já com lágrimas nos olhos tentei explicar, mas levei outra: - Pá!
Fui tomar banho bem quieto e na hora da janta esclareci tudo.
- Não tô com fome, já jantei.
E contei toda a história.
Mais calma, minha mãe começou a sorrir com cada detalhe da tarde no boliche meu pai também quando soube ria muito.
- Fez bem em dar o dinheiro pro guri. Mas nunca mais faz isto! Foi o sermão final da mãe.
Ainda hoje, tantos verões depois , quando olho uma havaiana, um jogo de boliche, um saunduíche com catchup e mostarda ou o prédio do antigo hotel riograndense onde hoje está um shopping, me lembro daquele final de tarde de veraneio em Capão.




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